sexta-feira, 12 de outubro de 2007

EPISÓDIO 23: O poeta


Quando começaram com essa história de “sombra por um dia”, Fernando já se irritou. “Ai, só o que me faltava ter que ficar de sombra de alguém...”. Claro que não fez nada. Passou seus momentos de sombra em casa, ou em algum parque aqui, acolá, pensando...
Já bastava ter tido que escrever aquele texto chato sobre a tal da palestra com os profissionais, agora ainda ter que seguir alguém... O pior tinha sido ter que bancar o bacanão praquela trouxa da Naty que veio puxar papinho sobre a tal da artista. Terrível.
Na semana seguinte, a professora estava para entregar os textos.
- Turma, eu corrigi os textos de todos, e quero dizer que estavam todos muito bons. É claro que alguns mais completos do que outros, mas no geral, fiquei muito satisfeita. E um texto em especial foi muito diferente da maioria. Eu poderia considerá-lo ruim, porque fugiu um pouco da proposta, mas na verdade foi um texto reflexivo muito bom e por isso vou ler para a turma.
Lúcia se morde num canto. “Será o meu? Será o meu?”
Mary Jane espicha os ouvidos. Tudo que é reflexivo a interessa.
As patis já começam a cochichar. “De quem será, quem será o pensador da turma?”
A professora espera o burburinho acalmar e começa a ler o texto quando a turma está em completo silêncio...
“O que quero ser, o que quero ser...?
Como responder a tal pergunta,
quando a mais elementar questão ainda paira sem resposta alguma,
sem nem pista ou chance, como uma vazia lacuna...?
Como responder o que eu quero ser se nem pude optar SE quero ser?
O que eu quero ser...?
Pra que ser algo além daquilo do que eu sou...?
E será que não sabendo o que SOU posso escolher o que SEREI?
O quanto essa escolha afetará a minha vida e o meu redor?
Qual o sentido de estar aqui?
De, de fato, existir...?
Enquanto os dias passam e preciso a cada um deles tomar mais decisões,
sigo com todas essas questões...
Com alguns anseios na alma,
alma que grita e nunca cala,
embora a boca permaneça em silêncio.
É muito fácil seguir sugestões,
ou adquirir posturas e comprar opiniões,
pertencer a este ou àquele grupo...
E no fim, a profissão pode ser nada mais que isso...
nada mais que uma adequação para satisfazer aqueles que me dominam...
O importante é saber não o quê, mas sempre sim o PORQUÊ...
E sem porquê, já nada escolho...”
O silêncio continua na sala, durante praticamente um minuto inteiro depois de a professora ler o texto. Os alunos refletem sobre as palavras, até que, quase em conjunto, o burburinho quebra o silêncio como uma bomba de energia.
“blablaeuchoquefoieleblablaeudiscordoeuissoeuaquiloblabla...”
Líder pergunta:
- E aí, sora, de quem é esse texto?
- Isso eu não vou falar, Frederico. Como li o texto sem permissão da pessoa, não posso expor sua identidade assim. Depois, se ele/ela quiser, contará a todos.
Renata fica muito afetada pelo texto. Levanta do lugar e senta na classe normalmente vazia, ao lado de Fernando.
- Bah, meu, o que tu achou do texto?
Ele responde meio indiferente:
- Achei fraco. O cara falou, falou e não disse nada... Não entendi direito.
- Mas tu é curto mesmo, né? Pois eu achei muito, muito bom... Aliás me fez pensar pra caramba... Preciso disso mesmo... Pensar!
E a menina se levanta indignada com a ignorância do colega...
Fernando mal pode conter o calor que lhe percorre as veias e vai explodir em batimentos cardíacos, no peito, queimando o coração. Era a primeira vez em muito tempo que se sentia assim. “Ela gostou do texto! Ela entendeu! Ela vai pensar...!”
E Fernando percebe, talvez tarde demais, que não só encontrou o que queria fazer, como também o que gostava de sentir...
Fernando sai da escola naquele dia olhando para o futuro de uma forma completamente diferente. Antes de chegar em casa, não pode conter-se. Senta no cordão da calçada, puxa um caderno e escreve, extasiado, outro texto:
“Sem querer a gente existe, e sem querer outros existem e encontram a gente que existe.... e na verdade o fato de outros existirem e dentre esses outros especialmente você faz o meu existir ter um significado totalmente novo. Sou tão feliz hoje, sinto isso de bom que há muito não encontrava... talvez nunca tenha encontrado... sou tão feliz hoje, por querer, e ter vontade de algo, ter vontade de entender cada vez mais tudo que envolve a existência de você.”
E ficou um pouco mais ali, pensando nas palavras de Renata.

Nenhum comentário: